quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Scent

Era madrugada e o quarto cheirava lírios. Luis sentava na cama em frente a Letícia, que quase chegava a sentir o cheiro que ele exalava. Algo entre flores e bebida. Cerveja. Das mais baratas.

Uma leve neblina encobria o redor, e era exatamente em volta de sua aura que o limite entre o ar puro e aquela fumaça toda se definia. Não diziam nada por medo talvez de afetar aquela sintonia, aquele equilíbrio absurdo que tinha se instaurado desde o momento em que Letícia tinha cruzado suas pernas perto do peito, soltado seu cabelo e levantado o rosto. Milhões de palavras passavam voando por entre o curto espaço entre eles.

Tinha sido a mais de oito anos desde a última vez que tinham se encontrado. Nada naquele rosto arredondado de Luis havia mudado. Se acentuado talvez. Os seus negros cabelos agora tiniam um preto carvão de doer os olhos. Sua pele morena, café com leite, estava agora mais definida, no meio exato entre a claridade e a escuridão. Seus olhos verdes, mais verdes do que nunca, pareciam ter roubado o brilho de uma esmeralda, ou talvez passado a noite sobre o orvalho de um pingo de ouro. Reluziam, refletiam.

- Não voltei por você – suas palavras produziam ondas, fazendo dançar a fumaça do incenso que queimava incessantemente.

- Eu sei.

- Não senti sua falta e mal me lembrava de como sua voz soava.

- Entendo.

Os cabelos dela haviam crescido, agora loiros dourados, sua pele escurecida pelo tempo nas férias de Janeiro, seu sorriso meio amarelado e meio desalinhado, havia encontrado um jeito charmoso de se agrupar. Calada, ela não se surpreenderia se ele não lembrasse nem como ela era.

- Conheci a África, parei de fumar, me casei, quis ter filhos. Um dia acordei com o pé esquerdo, e de repente a semana toda eu via um gato preto, e ele me seguiu por meses e meses e bimestres, até que eu quebrei um espelho. Perdi o emprego, a mulher e o ânimo. Voltei a fumar, me afastei de todo amigo ou conhecido. No meu aniversário não recebi nem cartão de loja. Mesmo porque não tenho mais casa, tô só por ai, andando, pensando, fumando...Cantei parabéns em silêncio enquanto tentava trocar a lâmpada da minha última fé, e buscava com toda força alguma coisa que me fizesse voltar a sentir alguma coisa. Vi o mundo em preto e branco, em cinza, em fumaça. Não vivia, plainava. Meu olhar ficava mais sonolento e mais distante e eu não percebi isso porque alguém me falou, mais vi na poça de chuva na rua noite passada quando eu desviei pra não cair nos dois buracos que tinha visto onde eu deveria ter olhos. Comi e chorei muito. Chorei sem sentir, nada saia de dentro de mim a não ser a fumaça do meu cigarro.- e o quarto ficava mais cheio, e os olhos de Letícia se enchiam de algo parecido com lágrimas de dor, mais um pouco menos desesperadas e um pouco mais intensas. – E enquanto eu tomava o último gole de cerveja, o sol refletiu naqueles espelhos aonde ficam os salgados, sabe? Refletiu nos meus olhos, e eu os fechei. Fechei e minhas mãos ficaram em cima deles por muito tempo. A dor passou e minhas mãos ficaram lá, como se elas se recusassem a me deixar voltar e ver toda aquela imensidão perdida que eu não via. Ficaram lá e se apertavam contra meu rosto parecendo querer me proteger, me sacudir, me acordar.

E passaram minutos, até que tudo que me distinguia de estar vivo ou morto era o cheiro daquela cerveja quente e barata na minha frente, e do meu suor misturado com a gordura frita dos salgados que o dono fritava do lado de dentro. E tudo era horrível, e eu quis muito, juro, quase cheguei a tirar a mão dos olhos e pô-la no nariz e me tirar daquela mistura nojenta de imagens e cheiros e sons que eu não queria viver, que eu não queria sentir. Me desculpa, eu não sei se ainda tenho aquela nossa antiga intimidade pra ir falando das coisas assim do jeito que eu tô fazendo, meio desesperado, meio afobado, mais eu acho que você entende né? Vim de tão longe, não por saudade, mais tenho que te explicar... Ou nem tenho se não quisesse, mais é que, sei lá, às vezes me vem a sensação de que quando acontece essas coisas loucas que nem a gente sabe explicar é sempre bom ter alguém do lado pra contar, né? Porque senão você acha que ficou doido e começa a inventar as coisas sozinho...Mais então, é que, no meio disso tudo, dessa merda toda, eu senti um cheiro muito forte, doeu minha cabeça lá no fundo, me arrepiei todo, me deu aqueles apertos que a gente tem quando ta pra descer a montanha russa sabe? Era um cheiro esquisito, e no começo eu não me lembrava de nada que existisse pra poder associar. Abri meus olhos pra procurar e não vi nada, nada forte e nada doce e nada meio cítrico e meio louco que pudesse me contar de onde vinha aquele cheiro. E o mais pirado é que eu cheguei a ver por um instante um rastro no ar, meio que uma fumaça, só que de outra cor...E você vai achar mesmo que eu tô louco, mais te juro que não sei explicar que cor era aquela. Era que nem o cheiro, uma mistura, irisada, um pouco de tudo, um pouco completo, intenso, mais suave, sutil.

Levantei do balcão, e adivinha? Coloquei o pé direito primeiro no chão! E ai que vem...lembrei de você. Lembrei porque tinha alguma coisa naquela cor estranha, alguma coisa naquele cheiro, que me trazia você. E não, não, eu não senti saudades. Pelo menos não de você, entenda. Mais ai veio o porquê de eu vir aqui, voltar aqui...

Mais acontece que quando eu cheguei, quando bati na tua porta, já não sentia mais o cheiro, não via nada. Quase virei as costas e fui embora, achando que você não ia abrir, ou, sei lá. Daí te vi, e desculpa não saber contar direito como era o cheiro e a cor e a fumaça, mais é que eu não lembro. Coisa mais difícil é lembrar de cheiro, né? A gente sente, gosta ou não gosta, e quando passa não dá pra lembrar, escrever, contar...- e a voz de Luis ia ficando mais fraca a medida que escutava o que proferia.

Letícia agora enrolara seus cabelos num rabo mal feito, pro lado, todo imperfeito e bagunçado. Segurava suas pernas e cantarolava uma musica baixinho, uma sequencia que tinha surgido do nada, como se entrasse em seu corpo junto com todo o incenso queimado. Seu olhar desviava e nadava por entre aquele mar que afogava o ambiente. O silêncio de Luis a tocava como nenhuma de seus abraços jamais havia o feito. Levantou seu olhar tímido em direção a estrada reta e profunda que o olhar dele lançava em sua direção.

- Não senti sua falta também, Luis. Te sinto agora.- suas mãos agora soltas se paralisaram encostadas sobre a cama.

Ele levantou-se e perto dela, a centímetros de distância, seus olhos choveram lágrimas. Quietas. O ar conduzira a mão de Letícia, que da inércia se projetara sobre as dele, apertando-as forte. Se juntaram, se abraçaram e choraram juntos, choveram juntos.

- Não sinto amor, sinto você, e quando você estava longe eu não te sentia, não te cheirava, te via, te escutava, te tocava, e você foi parecendo cada vez mais ilusão, cada vez mais esfumaçada na minha memória.

Os pensamentos de Luis iam se multiplicando e iam sendo absorvidos como quando se acende a luz num quarto escuro, como quando se vira a esquina e o acidente acontece, como quando se lê um poema e te sente personagem. Ele entendeu que quando não sentia Letícia, não sentia vida. Mesmo tendo até chegado a sentir, tudo havia passado, tudo tinha se esvaído futilmente. Sentia culpa, culpa por ter ido embora, e alivio por se sentir em casa, se sentir vendo e sentindo e cheirando e ouvindo tudo que cabia nele de verdade, tudo que o coloria.

O quarto refletia cores que coloriam a nuvem no quarto que ia cada vez mais se parecendo com algo concreto. O cheiro de lírios do incenso ia perfumando seus últimos milímetros de ar, enquanto Luis e Letícia se envolviam num abraço que não parecia ter fim e nem cansaço.

O dia amanhecia.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

...

Meus pulmões se purificaram de alegria quando receberam no seu interior uma leva daquele ar fresco. Meus pensamentos se multiplicavam em turbilhões. O sol quente tocava minha pele coberta por trapos rasgados. Carros, pessoas e idéias se aglutinavam em minha cabeça como se o tempo depositasse na curva de minha mente todos os muitos sentimentos soltos pelas cabeças passantes.
Andei até uma mulher de longos cabelos ruivos e olhos azuis. Parei ao seu lado como se ouvisse o que ela gritava. Ela me olhou, ofendida. Seus olhos se fundiram em lágrimas e engasgada me disse “O que faz aqui?”. E de repente eu já não a via, os seus medos eu já não conseguia mais ouvir e aquela frase entrou consciente em meus neurônios conscientes e me fez sorrir. Foquei em seus olhos perdidos de novo, puxei-a pela mão e corri para as escadas que parávamos em frente.
Ela me seguia, carregando aqueles olhos curiosos. Subimos tanto que sua respiração quis falhar. Seus olhos alegres piscavam sem ritmo. De lá de cima ela via o céu azul límpido. Eu via seus olhos tristes. E a cada pássaro que voava sobre nossas cabeças eu via seus olhos mudarem de modo, de cor e de palavras.
E então passou um bando de andorinhas e eu entendi. Eu vi tudo dentro daqueles olhos, e a sua eternidade imensamente perturbadora me fez entender cada pequeno tudo dentro de mim e dentro da vida grande que me rodeava, me tocava, me cheirava, me sentia, me afogava.
Soltei sua mão e lhe disse com toda a verdade dentro de mim “Lindos olhos.”. O segundo que antecedeu seu sorriso me contou todos os adjetivos que eu iria sentir em meu futuro. E assim aconteceu. Seu sorriso brilhante me despediu daquela imensidão de mundos e me levou de volta às minhas linhas em branco.
Corri até o fim do prédio e o começo do céu. Corri até o começo de um beija-flor e o fim das asas. Corri até o começo da distância e o fim do tempo. Corri para dentro. Corri demais. Ele conseguiu, pensei, enquanto corria pouco, só se esqueceu que homens perfeitos não precisam existir. Voei.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

"Abrace sua loucura antes que seja tarde demais"

Era uma vez uma fada. Era novinha ainda, não sabia muito sobre suas asas e então não tinha muita fé de que elas a levariam pra cima daquela relva verde que a rodeava. Voava sempre a uns poucos centímetros do chão, e até via outras fadas voarem mais alto, mas a sua televisão mostrava a mesma coisa, e ambas pareciam tão irreiais, já que não era com ela... Ninguém nunca tentou dar a mão para a fada e dizer que a levaria para cima, que a ensinaria sobre a vida sob o céu.
E como não o fizeram, ela se acostumou, e sempre foi a normalidade voar como ela voava.

Mas o que não é bom de algum jeito, nunca se adapta completamente. O inadaptável não se acomoda, uma vez que algo sempre suscita pra denunciar o incômodo contido.

As asas da fadinha começaram a pulsar, a dar surtos de voo, a sofrer espasmos. A fada assustada, sentiu fortemente a realidade que já imaginava existir: não podia ser só aquilo.
Se agarrou no olhar de uma outra fada que passava por ali, e que sem dúvida pareceu gostar da companhia da amiga. Voaram e chegaram alto. Os olhos da fada agora já alcançavam por trás dos hologramas, e sua asa batia inquieta, e de tão rápida, parecia flutuar num movimento intacto.
Mas a fada a quem tinha se agarrado resolveu voltar para o solo, uma vez que não tinha tirado os olhos do chão, e deixou o holograma absorvê-la mais uma vez. E essa puxou a fada real para onde tinham partido, e a fada, ligando aquele sentimento explosivo que carregava agora, depois de ter voado alto, com o companheiro das alturas, associou o seu bem estar á fadinha cega, e não ao seu voo.


Acabou voltando ao chão e por dias não conseguiu levantar voo, pois sua memória havia guardado as instruções milimetricamente desenhadas com mais um personagem no enredo.
Se consumiu horas tentando descobrir não o que havia vivido, mais sim o que esteve vivendo por tanto tempo. Aquela não-vida, aquela falta de cores, aquela ausência de luz.


E um ano se passou, e a fada agora consegue pelo menos olhar para cima. E sabe que conseguiria voar. Mas o sentimento emitido na travessia, no caminho vivido era tão colorido em sua memória, que seus pézinhos leves quase se recusavam a levantar voo sem um olhar de companhia.
Mas a natureza não obedece a caprichos: sua pequena asa volta a pulsar um sangue intenso, faminto por sentimentos. Fada de limites. Chega ao fim de suas capacidades, pra poder alçar voo e abranger seus 'ilimites'. Explora cada dor, inconsciente.

Tenta não pensar, não magicar, mas é quase inevitável. Ouve, sempre, de quem chega perto: "Vem, vamos além."
Mas ela tem que se libertar. Deixar seus pensamentos correrem soltos, brincarem, rirem, se esbaldarem no parque florido e fresco de sua imaginação. Não pode, logicamente, deixar de separar os limites da sua cabeça e da sua realidade. Vão acontecer sempre diferentes, como cada batida quase gêmea de suas asas. Mas tem que criar a luz. A luz de dentro, pra não deixar a escuridão de fora penetrar e invadir o seu brilho.
De dentro, a luz se espande. E vai buscar alimento, razão pra existir. Afinal é isso que tudo sempre faz. Busca razão, nexo, história, correspondência.

Quando ela entendeu isso, voou de olhos fechados. Abriu os braços e sentiu. Fagulhas abriam seus olhos, asas risonhas dançavam irisadas, e a fada voou até aonde ela sonhava.

domingo, 12 de abril de 2009

Limite

Tem dias que o corpo não encontra a alma. E então paramos o corpo pra sentir a alma querendo ser mais, a alma sonhando em viver.. E o corpo devagar, o corpo inanimado é tão mais lento do que o tudo imenso que a alma só imagina... Dói não ter o corpo do tamanho da alma, dói expandir, dói parar o corpo, dói sentir a alma. Dói na alma e no corpo.

O vácuo entre esses dois espaços e tempos é muito abismático, asmático, ensurdecedor. Afoga, aperta, machuca e questiona o sentido da melodia que eles tocam quando se encontram por inteiro.



Nem todo dia somos inteiros.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Sei e sinto a mudança de fora, e principalmente a de dentro de mim. Quanto mais nos segurarmos a sentimentos, iludidos pelo conceito de que pra ser eterno tem que ser igual, perderemos todas as pequenas mágicas dentro de cada tudo e pessoa, que suscitam sentimentos nunca sentidos. Mudança é a eternidade.

vou fingindo ser o que eu já sou

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"O melhor drama está no espectador e não no palco."