segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Frequência

O dia acordou triste. A pilha do nosso rádio estava no fim, cortando músicas e gaguejando notícias. O ar da cozinha parecia mais cinza e as trovoadas estrondosas pareciam querer preencher o vácuo silencioso que havia se instaurado depois que os ruídos do rádio cessaram de vez.
Abri o pote de café ainda rotulado por sua letra arredondada e coloquei água para ferver no fogão. O dia mal nascia e seus raios já eram afogados pelos pingos grossos que caíam do céu escuro. Sentei na nossa poltrona e me assustei com sua sombra ausente, gelada. Você não me dizia nada, apenas chorava. Chorava lágrimas grossas que caíam dos seus olhos escuros.
Abri meus olhos e procurei tua voz pelo ar. O máximo que pude foi escutar a água fervendo, e sentir o cheiro despertador do café.
Pensei em meu dia sem sua poesia, sem seu bom dia e sem seus beijos de boa noite. Me vi dentro da solidão que me consumia quando desligava o nosso rádio. "À nossa sintonia", você costumava brindar com nossos cafés da manhã. Seu sorriso terno e tão perfeitamente desalinhado e manchado de amarelo-sol se abria e o meu rádio ligava. Ouvia música o dia todo.
Hoje seguro minha caneca gélida e me aconchego no suéter vinho com que você costumava me abraçar.
Enquanto procuro pilhas na gaveta, descubro a falta que sua energia me faz.
Encaixo novas dentro do radinho velho e devagar volto a sentir palavras doces caminhando em minha direção. Não sinto sua pele macia e branca-neve, nem seus cabelos alourados me fazem mais o espetáculo de se derramarem em ondas radiadas. Só tenho sua fé, tão forte pra ter ficado. Há muito levaram a minha, que se esvaia com um sopro.
Sozinha, e com você, ainda vejo o sol que irradia luz dourada fosca por entre nuvens embaçadas. Te sinto dentro.

vou fingindo ser o que eu já sou

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"O melhor drama está no espectador e não no palco."